sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Jaurès

Eu queria viver com aquele sentimento de que existe um manual pra gente entender tudo. Um capítulo inteiro para explicar por quê a gente se apaixona, como isso acontece e como vai terminar, por exemplo, ia guardar o coração de muitos. Por outro lado, se esse capítulo existisse, meio mundo não ia descobrir como é bonito gostar de alguém. É tão bonito quanto crianças fazendo bolhas de sabão. Um movimento delicado, um assopro e um cristal líquido voando pra qualquer lugar.

Nesses anos todos, eu vi que esse manual nunca ia aparecer - e caso ele surgisse, queimaria folha por folha. As minhas interrogações mudariam e nenhuma resposta conseguiria ser completamente assertiva. A gente gosta do certo e do errado, mas essa é uma das maiores mentiras que escolhemos pra acreditar. Eu preferi aceitar que temos direitos pessoais para errar, acertar, fazer de novo, fazer diferente e ao mesmo tempo.

E se faltar tempo? Esse senhor de todas as coisas e que tem o ego do tamanho de uma montanha-russa. O tempo é o dono da pressa, da ausência, do atraso e do medo. E a relação que a gente costuma ter com o tempo é uma das coisas mais injustas que o próprio tempo já viu. A gente reclama, diz que não tem tempo pra nada, que perdeu o tempo. O tempo não é nosso, apesar de acreditarmos que temos todo o tempo do mundo. Temos tudo o que o tempo pode nos reservar; na verdade é isso, não o contrário.

O segundo que antecede o beijo, de repente o tempo passa em câmera lenta e é possível cortá-lo com os dedos. Um dia, quando a gente se encontrar no mesmo bar, eu te pago um gin-tônica e conto por quê eu resolvi segurar a sua mão ao invés de te levar pra minha casa, e que eu preciso de 5 minutos pra me apaixonar.

O moço da livraria era você, a música da Patti Smith sempre foi você. Nenhum manual seria capaz de descrever isso com a mesma perfeição da minha memória, o tempo foi. Ter o controle sobre o tempo não é uma das minhas pretensões, nem o hábito de usar relógio eu tenho. Eu só quero que o tempo guarde as minhas lembranças, os textos que nunca publiquei e que seja calmo comigo.

Paris, 6 de novembro de 2013.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

110%

Há um ano atrás, eu contava os dias pra sair de férias e fazer uma viagem que dividiu a minha vida em antes e depois. De lá pra cá, não mudou muita coisa. Eu continuo contando os dias, só que dessa vez não envolve viagem nem férias. Eu conto os dias pra tentar juntar o que ficou dividido em um ano.

De um ano pra cá, a vida deu muitas voltas. Tudo isso pra eu ter o trabalho de acertá-la novamente, do meu jeito, do jeito que tinha que ser e como a vida queria. Há um ano atrás, eu não tinha a menor ideia do que viria pela frente. Eu não saberia, só via um esboço mal desenhado do que eu imaginava.

Dez rabiscos, uma cirurgia de miopia, cinco países diferentes e um amor por vez. No Natal, dois minutos antes da meia-noite, eu ganhei o melhor presente de todos; daqueles que vocês abre e fica estática, não sabendo se agradece, sorri, mas fica sem acreditar se o que aconteceu é de verdade.

Eu queria um cachorro, só não tinha planejado encontrar a Rita. Ela invadiu a minha casa com as quatro patinhas na porta, mudou os meus horários e me mostrou que eu podia cuidar de alguém porque eu já conseguia cuidar de mim. Um filhote jogou isso na minha cara e desde então eu não paro de sorrir.

Ela finalmente chegou onde queria.
Agora é uma questão de tempo chegar aonde quer.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Um dia

Um dia tem 24 horas, 1.440 minutos e 86.400 segundos. Dentro dessas partículas temporais, existe algo imaterial que habita a propriedade mais importante do tempo em si. Um dia carrega 3 suspiros e 47 batimentos cardíacos pela manhã, quando a moça desperta e tenta lembrar o sonho que teve durante a noite.

No dia dela, as horas costumam passar devagar. Ela vem trabalhando tanto que a vida dela às vezes parece estar na mesmice. Lá no fundo, no seu seu mais eu de todo o sistema solar, ela guarda o medo de os amigos não a reconhecerem pela rua. Ela anda tão sumida que na próxima vez que pisar em seu bar preferido vai ter de fazer amizade com o barman pra ganhar a sua confiança novamente. Essa moça é coadjuvante nesse texto e ela sabe disso.

Do outro lado da cidade, a baixista sem freio na língua; sem freio na vida, pra dizer bem a verdade. Ela parece um desses trens que passam de madrugada no último horário, fazendo muito barulho, acordando o bairro inteiro. Ela é quase uma luminária, por onde passa costuma deixar luz e calor. Tem a risada fácil, gostosa, que te faz rir junto mesmo que a história contada seja a coisa mais boçal do universo.

Os acordes, ela vai construindo pela vida, juntando melodias sinceras das pessoas que conhece. A música dela tem sol no compasso e na palavra, com direito a salto alto na hora certa e tênis rasgado em todas as horas possíveis. Ela tem um amor pra chamar de seu e uma fila de novos amores que querem ser dela. Onde ela pisa fica um sinal demarcando território e fazendo do mundo algo que não cabe nas mãos. Algo que não cabe em um dia, em 24 horas, em 1.440 minutos nem em 86.400 segundos.